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“NEGROS (AS) MORREM PORQUE BRILHAM DEMAIS II”

  • Foto do escritor: Sergio São Bernardo
    Sergio São Bernardo
  • 2 de jun.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 28 de jun.

Sérgio São Bernardo
Sérgio São Bernardo

Há alguns anos, escrevi um artigo com esse título, publicado no Jornal Atarde, em 01 de julho de 2009. Naquela ocasião, discutimos a invisibilização e a morte de lideranças negras que foram/são “executados” brutalmente, sem julgamento e que, posteriormente, foram/são reconhecidas após as suas mortes. Há um provérbio iorubano que diz “Iwa re ni o nse e” - teu caráter proferirá sentença contra ti! Esse é um dos sentidos do “Ìwa Pèlé” iorubano e que nos incentiva a praticar conceitos e experiências do justo entre nós! Dada a recente ocorrência envolvendo uma Ministra e um Ministro negros, este texto foi concebido para refletir sobre um tema que requer uma abertura para o diálogo de forma ampla e plural.

Dessa forma, aviso que as propostas apresentadas podem ser aplicadas a diversas outras questões que envolvem a população negra no Brasil.


Há alguns anos, escrevi um artigo com esse título, publicado no Jornal Atarde, em 01 de julho de 2009. Naquela ocasião, discutimos a invisibilização e a morte de lideranças negras que foram/são “executados” brutalmente, sem julgamento e que, posteriormente, foram/são reconhecidas após as suas mortes. Há um provérbio iorubano que diz “Iwa re ni o nse e” - teu caráter proferirá sentença contra ti! Esse é um dos sentidos do “Ìwa Pèlé” iorubano e que nos incentiva a praticar conceitos e experiências do justo entre nós! Dada a recente ocorrência envolvendo uma Ministra e um Ministro negros, este texto foi concebido para refletir sobre um tema que requer uma abertura para o diálogo de forma ampla e plural.

Dessa forma, aviso que as propostas apresentadas podem ser aplicadas a diversas outras questões que envolvem a população negra no Brasil.


Vivemos num momento histórico em que a luta contra a violência contra as mulheres requer um grau de justeza que dispensa qualquer atitude que seja relativista desse direito. Não há subterfúgios e não há nenhuma insinuação para a não aplicação da lei que protege as mulheres no Brasil. Entendo que as organizações das mulheres negras são uma das poucas novidades no cenário político nas últimas décadas no Brasil. Aprendemos que “o que não é bom para o enxame não é bom para as abelhas”, e ai desse comunitarismo todo podemos extrair algo que nos inspire a pensar saídas para esse quadro que nos desafia?

Eis que me vejo abordando acontecimentos novos com sentimentos antigos! A questão é saber se estamos seguindo os nossos princípios e valores humanitários ou se estamos servindo a outros propósitos. Além do suposto erro de ter cometido assédio, o Ministro Silvio Almeida também cometeu outros erros ao menosprezar as leis da política, da nova esquerda, da composição do governo Lula e da ascensão da ultra direita. Do mesmo modo, a Ministra Anielle Franco acerta em não dar espaço à machocracia que diz que esse tipo de abuso não se deve enfrentar publicamente; por outro lado, erra pelos mesmos erros do Ministro. Ora, do modo que fez a denúncia, valorizada sobre os alcances e usos da sua coragem, até agora tudo fica a serviço dos incautos palacianos e dos venais fascistas que nos querem a todos nós que nos matemos! Precisamos aproveitar esse momento para nos ensinar algo!


Nos últimos anos criticamos a genealogia e os discursos ocidentais com as forças dicotômicas do ser homem e ser mulher e as suas diversidades sexuais e de gênero. Já que apostamos em múltiplas possibilidades subjetivas, que tal nos atrevermos a tematizar esse fato com as nossas experiências? Algo como confrontar os erros/acertos/omissões e colocarmos no cenário a responsabilidade coletiva e comunitária sobre o caso: “Um camelo não ri da corcova do outro” Senegâmbia e, até porque: “Mosquito é que pica o dono da casa onde mora”. Fazemos discursos liberais, abolicionistas, garantistas, libertacionistas, comunitaristas, mas a vingança punitivista está em nosso subconsciente coletivo, em nossas cosmogonias, mitologias e senso comum.


É inconcebível seguir princípios jurídico-filosóficos se não conseguirmos aplicá-los quando os casos nos visitam! Sabemos que tem pessoas que publicam coisas e praticam outras, ainda assim, exporei a minha opinião/pesquisa, arriscando ser incompreendido, mas nunca fugirei ao bom debate. Temos muitas referências/ensinamentos que fogem às respostas apressadas adotadas aos inúmeros casos de pessoas negras acusadas e criticadas de como exercem lugares de poder de Estado no Brasil. Somos corpos e ideias fora dos lugares, e isso por sí só nos explica, inclusive as nossas contradições e mazelas! O fato de uma organização da sociedade civil ter divulgado e, consequentemente, antecipado o julgamento dos negros e das negras no poder causou-me estranheza. Poderia responder: “Questões de casa não se discutem na praça” – Zambézia – sobre a Privacidade, mas tudo é muito mais...

Todas as pessoas sabem que uma denúncia ou suspeita nas redes sociais é uma meia sentença. Sabemos que o julgamento e a condenação já aconteceram. Não se mata duas vezes: “O bode só se castra uma vez”, afro-cubano. A pessoa acusada e a pessoa acusadora não podem ficar expostas a isso! As regras foram definidas por nós? Reconhecemos isso em filmes e livros que tratam de multiculturalismos e pluralismos jurídicos, e achamos isso interessante. Mas e nós, aqui?


O QUE A JUSTIÇA “QUILOMBOLA E AFRO-AMERICANA” NOS ENSINA, PARA ALÉM DO BEM-VIVER?


Por que os princípios processuais mencionados no capítulo dos direitos fundamentais da Constituição da República, como o devido processo legal, o princípio da contradição, a ampla defesa, entre outros, não foram observados? Por que o recente Decreto 12.122/2024, promulgado pelo Presidente Lula, que trata do assédio na administração pública federal e exige um conjunto de procedimentos e regras para o seu tratamento não foi adotado ao caso? E se fossemos obrigados a adotar as nossas "justiças africanas", o que faríamos? Um debate permanente nos levará para a melhor forma de tratá-lo. Então, com as devidas considerações, lanço-me a apontar alguns ensinamentos/referências para uma possível abordagem dessas “africanias”.


Iniciaria com dois ensinamentos proverbiais: "converse com seu acusador antes de ir ao tribunal" e "A justiça começa em casa", ambas cultuadas por muitos povos africanos e em citações bíblicas, (Mateus 5:25) enfatizando a importância de resolver nossos conflitos entre nós, antes de buscarmos a lei e a justiça institucionalizada. Face à exposição de duas pessoas negras públicas, caberia um tratamento utilizando os ensinamentos da justiça comunitária? Seria saudável chamá-los para uma conversa com as suas comunidades e representações sociais? E as punições? Poderíamos pensar como os culpados deveriam ser punidos?

A dimensão da justiça comunitária, para alguns povos africanos e diaspóricos, está relacionada a valores e princípios, metafísicos, ontológicos, religiosos, sociais, sexuais e legais. Como é sempre lembrado por Keba M’Baye, é uma das respostas africanas ao mundo. Isto está presente, por exemplo, na Carta Africana dos Direitos Humanos. A garantia de uma vida comunitária como direito fundamental, sobretudo na diáspora (quilombolismo, palenques, etc.). Se isso for possível, as responsabilidades individuais das pessoas negras estariam plasmadas por nossa responsabilidade coletiva sobre a responsabilidade deles. Enfim, somos coletivamente culpados por tudo que aconteceu ali no Planalto.


O cumprimento das etapas do tempo como realizador de justiça é uma dimensão da nossa cosmoconcepção. É por isso que, quando se reivindica "o tempo razoável do processo”, o que se quer é a realização da verdadeira justiça. Bidima (1997) nos diz sobre a força e a sacralidade da palavra, como guardiã da justiça e que falar e calar são dimensões do uso coletivo da palavra. A expressão "palabre" se refere aos espaços de mediação de conflitos da comunidade, usados pelos mais velhos ou sábios. Podemos aplicar os ensinamentos proverbiais, como: "Quem atravessa o rio em bando não tem medo do crocodilo" – Zambézia ou "Quando duas pessoas enfrentam conflitos, uma terceira deve separá-las e servir de reconciliador" – Congo – sobre a vida comunitária e conciliação.


Fu-Kiau, um dos poucos filósofos que tratam do processo penal coletivo, preleciona: "Se alguém fez o bem, aprendeu na comunidade; se fez o mal, também aprendeu na comunidade". Ele demonstra que os valores africanos contemporâneos estão em desacordo com o que aprendemos no passado em nossas comunidades. Ele apresenta três variantes do que seria um líder verdadeiro: Variante 1. Mfumu-dikânda Kalauka milongi katundi - um líder societal torna-se tolo se ele contorna o conselho do seu povo. Variante 2. Mfumu-dikanda kalauka bilesi katundidi - um líder da comunidade torna-se tolo se usurpa as prerrogativas do seu povo. Variante 3. Mfumu-dikanda kalauka yèmba katûmbudi - um líder da comunidade torna-se mentalmente doente se ele pretende destruir as instituições fundamentais do público. (FU-KIAU, 2011).


Para uma abertura em diversas e distintas leituras, podemos pôr em diálogo, Lélia Gonzalez, Severino Ngoenha (2011), Jean-Godefrov Bidima (2002) e Makota Valdina Pinto (2011) ao mencionarem a importância da Justiça comunitária e das nossas próprias experienciais humanitárias para buscarmos soluções aos nossos conflitos. Para a Makota Valdina, o ser humano e as forças ambientais são princípios que formam a complexa cosmologia do Bantu Congo, na qual o homem é percebido como um ser que vai e volta em torno do centro das forças vitais. Enfim, Nkisi é equilíbrio e justiça. Já Wiredu (2004), criticando Habermas, fala não haver nada de novo na sociedade da comunicação ideal, como espaço para tratar de conflitos e interesses, porquanto estaria reproduzindo apenas verdades antigas. A busca pelo consenso é, também, uma tradição africana e a democracia estimula a disputa e elimina supostas minorias. Ngoenha, fala da justiça costureira como construidora de coesão social.


Maat, a deusa da Verdade no Egito antigo, nos ensina como desenvolver a consciência do coração para compreender os níveis de responsabilidade em nossas ações. Há um Odu de Ifá, que diz: “Se o filho do rei nasce dentuço, não pode tomar emprestados os lábios do escravo para cobrir seus dentes”. Outra imensa categoria é essa mesma do Ubuntu. Uma força humanizadora da nossa existência no mundo, que pode ser usada para tratar conflitos e promover a harmonia. O Ubuntu é uma orientação que ensina a perdoar e a reconciliar, porque a restituição faz parte desse movimento milenar. Seria um desafio para o pensamento profissional africano e diaspórico não tentarmos praticar o que investigamos e nem tentarmos ver se servem aos nossos conflitos. Aqui valem as premissas da responsabilidade e da reciprocidade: “quem não pode com o pote, não pega na rudia".


Para concluir, pergunta-se: Qual é o motivo para condenar pessoas negras (em todos os níveis) e a quem isso interessa? Por que as decisões e as justificativas são sempre autoritárias e apressadas, em detrimento de pessoas brancas com iguais acusações? Sabemos que condenaram sumariamente a Ministra Matilde Ribeiro – 2008, o Ministro Orlando Silva - 2011, a Ministra Benedita da Silva -2004, o cantor Wilson Simonal, o líder da revolta da Chibata, João Cândido, etc. Observe que todas essas pessoas passaram por acusações e condenações vexatórias e brutais. Por isso, lhes caem bem os versos ético-jurídicos: “O chefe não ouve só por um ouvido”, - Congo ou “a chuva não cai num telhado só” – Congo - para enfatizar o princípio do contraditório e aquilo que diz respeito a todos. Precisamos saber por que pretos morrem! Pretos morrem porque brilham demais!


Sobre o autor - Sergio São Bernando

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